terça-feira, 9 de novembro de 2010

As teorias da drogadição

Quem já teve um familiar ou amigo usuário de drogas sabe da dificuldade na hora de procurar terapias de recuperação. Uma das dúvidas mais frequentes é sobre a que tipo de tratamento recorrer – o internamento para desintoxicação ou as terapias conhecidas como “casas-dia”, em que o de­­pendente volta para seu endereço nos finais de tarde, de modo a enfrentar os motivos da drogadição. O método é tido como menos artificial, pois não tira o usuário de sua realidade.

O dilema não pertence apenas às famílias: o próprio poder público está dividido sobre o assunto. A política de governo em vigor é a dos Centros de Atenção Psicos­social (CAPs), que rejeitam as práticas de hospitalização tradicionais. Mas em Curitiba, a Secretaria Muni­cipal Antidrogas vai adotar, em paralelo aos CAPs, uma outra orien­­tação. Apenas em 2010, o órgão municipal vai investir mais de R$ 1 milhão em comunidades terapêuticas, um meio termo entre a internação e as terapias indicadas pelo Ministério da Saúde.

O ministério reforça o modelo dos CAPs e lembra que nasceu da luta antimanicomial – movimento nacional, desencadeado na década de 1980, de combate aos traumáticos hospitais psiquiátricos, nos quais dependentes químicos não só conviviam com doentes mentais como eram sujeitos a tratamentos inadequados. As terapias, contudo, podem ser complementares, não havendo necessidade de expor usuários e familiares a tantas dúvidas.

Os CAPs são hoje o carro-chefe do governo federal no atendimento aos usuários de drogas. Os centros estão voltados para a chamada “redução de danos”, que, entre outras táticas, entende a recaída como parte do processo de recuperação. De acordo com o Ministério da Saúde, a cobertura de CAPs passou de 21%, em 2002, para 57%, ao fi­­nal do primeiro semestre de 2009. O usuário tem um atendimento personalizado, com uma equipe multidisciplinar, como psiquiatras e terapeutas ocupacionais, e frequenta o local du­­rante a manhã e a tarde, retornando para casa no final do dia.

A crítica ao sistema incentivado pelo governo federal é que, mesmo com a ampliação da cobertura, boa parte dos municípios brasileiros não possui um CAPs. Além disso, este equipamento público não funciona 24 horas. Se um dependente químico precisar de ajuda aos fins de semana, por exemplo, terá poucas alternativas além de procurar uma unidade básica de saúde, inadequada para esses casos.

Outro ponto levantado por es­­pecialistas é que o uso de drogas é individual. Depende de fatores como contexto social e familiar, tempo e tipo de substâncias utilizadas. Portanto, o tratamento também deve ser individual e ainda que a atenção à saúde seja primordial, como o atendimento feito nos CAPS, alternativas como as comunidades terapêuticas – nome dado às chácaras e centros de isolamento e desintoxicação – são bem-vindas.

Em famílias cujo membro não se adapta ao atendimento nos CAPs resta buscar um auxílio nã governamental. Nem sempre é possível. Clínicas particulares cobram em média R$ 4 mil por mês pelo tratamento. É nesta lacuna que as comunidades terapêuticas se tornam a única alternativa para familiares que não sabem o que fazer.

O principal problema é que a grande maioria das comunidades terapêuticas não se adequa às normas da Vigilância Sanitária, pois não tem equipe, proposta de recuperação e infraestrutura adequadas. Um levantamento realizado pela própria Secretaria Mu­­nicipal Antidrogas mostra que das 49 co­­munidades existentes em Curitiba e região, apenas 4 estão de acordo com as exigências. Outro ponto criticado é que 90% desses locais têm cunho religioso e pautam suas ações apenas na crença e não em programas de recuperação efetivos.

A questão acaba virando uma bola de neve. O CAPs não dá conta de todo o atendimento, seja por falta de cobertura ou por inadequação do usuário. Mas é a única política incentivada pelo Minis­tério da Saúde. As famílias que não têm acesso aos CAPs ficam sem alternativa. Ou buscam a unidade básica de saúde – que não dá conta do problema e nem foi criada para este fim – ou uma comunidade terapêutica. Estas, por sua vez, não recebem qualquer repasse do Ministério da Saúde e não se estruturam. Os municípios, principalmente os menores, não têm verba suficiente para investir nessa área. O resultado é que o usuário de drogas que busca um tratamento acaba sendo vitimizado duplamente.

Operação em rede

Em 2010, a Secretaria Antidro­gas de Curitiba teve o maior porcentual de aumento no orçamento municipal. A verba passou de R$ 4,5 milhões para R$ 6,3 milhões, um acréscimo de 40%. A maior parte deste valor é destinado às ações de prevenção e cerca de R$ 1 milhão ajudará na criação da Rede de Comunidades Tera­pêuticas. Um edital será lançado em parceria com a Fundação de Ação Social e Secretaria Mu­­nicipal de Saúde para convocar as comunidades interessadas em participar.

As entidades passarão por um curso com duração de dois meses, no qual serão abordadas normas sanitárias e programas de tratamento. Os grupos passarão a contar com uma assessoria para atender à legislação e se regularizar na Anvisa e prefeitura. As nove co­­munidades que cumprirem as exigências de maneira mais eficaz assinarão um contrato de cooperação com o município. Haverá uma ONG por regional, com cerca de 20 vagas cada. A estimativa é que estejam disponíveis 180 vagas por mês. E que o curso co­­mece ainda este semestre. “Nosso objetivo é capacitar e fiscalizar. Infelizmente, a maior parte dos municípios não tem essa alternativa e precisa de auxílio estadual e federal”, diz o ex-secretário da pasta Fernando Francischini, idealizador da iniciativa.


Membro de ONG sugere ação em redes de proteção

A situação das comunidades terapêuticas é delicada. Como são desassistidas pelo poder público e trabalham com recursos parcos e voluntariado, não conseguem cumprir as regras da Vigilância Sanitária. Há o agravante de que a maior parte desses espaços é ligada às igrejas e depende da adesão dos fiéis. “Muitas nem sequer têm verba para contratar profissionais. E mesmo assim, sanam uma demanda que nem o Estado consegue sanar”, diz Flávio Roberto Almeida Lemos, coordenador da Casa de Recuperação Água da Vida (Cravi).

Para o coordenador, o atendimento aos dependentes químicos fica deficitário se os investimento forem feitos apenas nos centros de apoio psicossocial. “Houve um avanço grande do crack. É um tipo de droga que necessita de internação. Deveriam existir várias formas de assistência, mas o país só tem uma”. Para Flávio, o ideal seria trabalhar em rede, fazendo com que os usuários das comunidades pudessem frequentar os CAPs durante o dia, por exemplo. (PC)


Como funciona

Confira os principais quesitos para instalação de comunidades terapêuticas:

- Documentação legal, como alvará de funcionamento, precisa estar em dia.

- Avaliação médica rigorosa. Comunidades não podem abrigar pessoas com transtornos mentais no mesmo espaço que dependentes químicos.

- Não impor crença religiosa.

- Manter equipe mínima a cada 30 residentes. Núcleos devem ser compostos de: coordenador, profissional da área da saúde ou serviço social, três agentes comunitários.

- Recomenda-se capacidade máxima, em cada comunidade, de 60 residentes e quarto coletivo limitados a seis residentes, além de quadras de esporte e salas para lazer e para atendimento individual e coletivo.

- Garantir alimentação nutritiva, cuidados de higiene e alojamentos adequados.

- Jamais adotar castigos físicos, psíquicos ou morais, respeitando a dignidade e integridade dos pacientes, independentemente da etnia, credo religioso e ideologias, nacionalidade, preferência sexual, antecedentes criminais ou situação financeira.

- Os serviços devem ser explicitados no programa terapêutico da casa, constando o tempo máximo de internação. Evitar práticas que tornem o tratamento crônico. Vínculos familiares e sociais precisam ser incentivados. (PC)


Estudiosos pedem terapias plurais

Especialistas elogiam a criação do Centros de Apoio Psicossocial (CAPs) e a política de redução de danos neles praticadas. Critica-se, no entanto, a falta de investimentos em outras alternativas terapêuticas, já que um único modelo não dá conta da complexidade da drogadição.

O psiquiatra Aderbal Vieira, do Programa de Orientação e Aten­dimento a Dependentes (Proad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), diz que o que deve ser perguntado não é qual o melhor método e sim para que tipo de paciente tal tratamento dará resultado.

Vieira explica que há duas correntes predominantes quando o assunto é drogas. A primeira é a norte-americana, que trabalha com o conceito de abstinência total. A segunda é a europeia, que pratica a “redução de danos”. Essa política tomou corpo na década de 80, na Holanda, quando o governo passou a distribuir seringas para evitar que usuários de drogas injetáveis fossem contaminados por doenças transmissíveis pelo sangue.

Para o pesquisador, o debate que deveria ser feito não é sobre o uso de drogas ou não, mas sim sobre a dependência e qualidade de vida. “Quem parou de usar drogas e tem uma vida péssima pode estar pior do que quem faz uso moderado”, argumenta. Vieira lembra que a dependência, e ele não se refere somente à dependência de substâncias psicoativas, é mais ampla do que o uso de drogas. Para que fique livre em sua escolha, o indivíduo precisa, antes de mais nada, compreender sua condição.

A coordenadora do grupo de estudo sobre álcool e outras drogas do Conselho Federal de Psicologia, Jureuda Duarte Guerra, avalia que o principal problema das comunidades terapêuticas é não seguir as normas existentes. “Certo dia, encontramos um local em que o pastor decidiu que o tratamento teria de durar nove meses. Quando questionado sobre o porquê, ele disse, sem nenhum critério científico, que esse era o tempo de um novo nascimento”. A pesquisadora afirma que não existe um tratamento único e as medidas podem ser complementares. “Vemos um ótimo trabalho dos grupos anônimos, por exemplo, que dão apoio tanto para as pessoas em tratamento quanto para a família”. Ela lembra ainda que o conselho defende a descriminalização das drogas.

As comunidades terapêuticas não são um serviço da área de saúde e sim complementares. Isso significa que um acompanhamento médico é indispensável – o que implica passar pelos CAPs. Essa é a opinião da Coordenadora do Programa Saúde Mental da prefeitura de Curitiba, Cristiane Ve­­ne­­tikides. “Com o avanço do crack, não podemos desperdiçar auxílio. Mas é no CAPs que temos uma gama de especialistas.” (PC)
Fonte:Gazeta do Povo/ABEAD(Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas)

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